“Não foi imediato. Não foi de uma hora para outra. Veio aos poucos, se acumulando como água gotejando em um copo, até que o recipiente se encheu e as próximas gotas passaram a transbordar seu conteúdo, molhando tudo por perto. Pior ainda, o copo se rachou com a pressão e de suas fissuras mais água ainda veio a vasar e fluir, empapando papéis, livros e tudo mais nas proximidades.
E o que tudo isso significou, quando a água extravasou para todos os cantos? Os papéis ficaram com letras ininteligíveis, borradas; o livro já não tinha uma coerência lógica, concatenada, pois muitas páginas estavam impossíveis de ler. Em desespero, tentei ler tudo aquilo e buscar algum sentido. Não conseguia encontrar nada, os papéis e livros que antes eu compreendia plenamente agora eram estranhos para mim. Com o pensamento acelerado, joguei o copo rachado para o lado, espatifando-o em mil pedaços de vidro cortante. Minha mão cortou-se, escorrendo um pouco de sangue e misturando-se aos papéis.
De repente, vi um sentido naquelas gotas rubras e densas misturadas ao branco e preto dos papéis molhados. Uma mensagem, um chamado irrecusável e do qual eu tinha plena convicção. Eu tinha que tentar interferir nas eleições americanas. Tinha pouco menos de dois meses para influenciar eleitores de outro país e para isso teria de utilizar minhas redes sociais, Facebook e Instagram, para garantir a vitória do democrata Joe Biden. A estratégia inicial seria conseguir mais amigos e seguidores americanos com postagens neutras politicamente e, quando tivesse um número suficiente e quando estivesse mais próximo da eleição, daria meu posicionamento político, interferindo, assim, no resultado. Impossível? Eu achava que não, tinha certeza do meu sucesso.
Nos dias seguintes, inclusive, acordava de madrugada com novas ideias de postagens nas redes sociais, esperando sempre um sucesso arrebatador e retumbante. Mas essa lógica não foi linear e constante, houve alguns empecilhos pelo caminho. Estava sendo espionado. Não apenas pelo governo do Estados Unidos, mas também pelos governos da Rússia e da China. Os EUA mandaram um mini robô espião em forma de abelha que entrou pela janela da cozinha da minha casa e foi direto para a luz fluorescente que estava acesa. A abelha-robô ficou confusa e foi para o chão. Rapidamente tapei ela com um copo e prendi o exemplar. Depois passei o robô para uma vasilha e escondi bem no fundo do meu armário de roupas – afinal, melhor colocá-la em um local escuro e isolado, para que não conseguisse captar mais sons e imagens. Assim, tinha a prova de que realmente havia espionagem americana no Brasil. Pressupus que essa tentativa se devesse a minha intenção de interferência nas eleições americanas.
Já os Chineses me espionavam em meu próprio celular, da marca chinesa Huawei. Não podia ter uma conversa no whatsapp em paz, sem pensar que estava tudo sendo enviado por algum sistema espião instalado no meu celular para as autoridades comunistas chinesas. Sim, estavam todos muito interessados em mim, eu era uma pessoa muito importante no cenário geopolítico mundial.
Os russos foram mais ostensivos e invasivos. As agentes deles, todas mulheres estonteantemente belas, estavam infiltradas em um aplicativo de relacionamentos amorosos e tentavam marcar encontros comigo. Era impossível saber em quem confiar! Muito perigoso, um encontro desses poderia colocar minha vida em perigo! Não caí na armadilha deles, não marquei nenhum encontro. Mas, eles não desistiram, me perseguiram na rua, enquanto em dava uma caminhada. Um carro fez uma manobra perigosa, pegou a contramão e acelerou rapidamente. Fiquei intrigado com aquilo. Alguns minutos depois esse mesmo carro estava estacionado no meu caminho. Abrira as portas e emergiu um casal de adultos de peles claras como o gelo e altos, claramente fisionomia russa e provavelmente espiões do alto escalão do serviço secreto de Vladimir Putin. Os dois ficaram me olhando, enquanto eu me afastava correndo deles e ia direto para minha casa. No caminho ainda ouvi uma moto se aproximando e achei que estava para ser executado por algum dos serviços secretos que tanto me perseguiam. Corri como nunca antes na vida e consegui me afastar da rota do motociclista. Não parei de correr até chegar em casa.
Dias depois, olhei para os papéis e para os livros molhados e ensanguentados do começo deste relato. Continuavam sem fazer sentido. Fiquei agressivo, agitado. Destruí meu quarto. Quebrei os armários, joguei os livros no chão, roupas, tudo. Uma bagunça. Não poderia mais continuar assim. Ninguém aguenta. Nem eu nem as pessoas próximas a mim. Tive de ser internado e lá começou outro capítulo dessa história.
Ao lidar com delírios, alucinações e outros sintomas do espectro psicótico é sempre importante contar com ajuda especializada, pois ninguém precisa enfrentar essas irrealidades desestabilizadoras sozinho. O uso de medicamentos psiquiátricos é extremamente necessário para muitos casos e em todos eles é fundamental o apoio e compreensão dos familiares e amigos para que haja uma melhora no quadro e se possa ter uma vida plena, saudável, funcional e feliz.”
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